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≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 30.12.10

Senhor Gonçalo

Com a possível excepção dos comentadores televisivos todo-o-terreno (pagos a peso de ouro) e do Toni picheleiro-erudito (uma pessoa que eu conheço), não penso que ninguém se deva inibir de falar de um tema que não domine por completo. Julgo que haverá poucas vantagens em manter a discussão - qualquer discussão - circunscrita a um pequeno grupo de sábios, fechando os portões de entrada a quem não seja especialista disto ou daquilo, até porque ninguém sabe muito bem onde acaba isto e começa aquilo, e é importante preservar desimpedidos os canais entre as diferentes áreas do saber, tal como hoje as identificamos (apesar de tudo, somos capazes de reconhecer algumas fronteiras implícitas entre ciência, arte e pastelaria, por exemplo). Um caso que me interessa em especial diz respeito à forma como conceitos científicos são trasladados para as ciências sociais e para a literatura. Pouco me incomoda que noções vagas e um tanto deformadas de «relatividade», «selecção natural», «princípio de incerteza» ou «teoria do caos» sejam polvilhadas em artigos de sociologia, antropologia ou filosofia e seus derivados, desde que a autoria desses artigos não pertença a indivíduos com uma vaidade de pavão e uma irritante apetência por torcer artificialmente os argumentos, ao mesmo tempo que revelam pouco respeito pela história desses conceitos. Esta minha postura serena decorre, acho eu, do facto de eu distinguir duas abordagens: uma que consiste na utilização de expressões pseudo-científicas como pretenso argumento de autoridade, emaranhando propositadamente o discurso, e outra que importa os conceitos sem disfarçar a inevitável estranheza que acompanha uma mudança mais ou menos violenta de cenário nem as dificuldades que daí advêm (imaginem aquelas semanas logo depois de uma mudança de casa, para outro país, e a pequena ansiedade que precede a afinação da rotina). A primeira dessas abordagens deve ser combatida com ferocidade e, caso seja necessário, com moderada humilhação pública. Ninguém se deve valer da linguagem pseudo-científica para atemorizar leitores. Já o segundo tipo de abordagem é, mesmo nos casos mais graves, quase inócuo e, a longo prazo, trará um considerável número de vantagens, acabando por enriquecer e alargar o âmbito da discussão. A falta de rigor, por incrível que pareça aos mais fundamentalistas, também pode estimular avanços importantes numa teoria, assim como é impossível alcançar certos avanços sem optar pelo rigor (queriam só regabofe, era?). Ainda sem absoluta certeza desta conclusão, julgo que Gonçalo M. Tavares está mais próximo daquilo que eu identifiquei como segundo tipo de abordagem do que do primeiro, incorporando as suas próprias dificuldades no processo de busca da natureza fundamental das coisas. Pelo que eu me apercebi, Gonçalo M. Tavares utiliza tudo o que vem à rede (e os conceitos científicos chegam à rede dele com alguma frequência) para tentar ver mais longe e não para confundir deliberadamente o leitor. Claro está que, não raras vezes, há nas suas declarações e livros uma ingenuidade surpreendente, e aqui e ali um esticar de corda que valha-me deus (basta espreitar a entrevista deste ano à revista Ler), mas, também a mim, me parece que o seu esforço - ao contrário de vários dos seus esquemas e ilações duvidosas - é honesto. No entanto, essa componente genuína sabe-me a pouco e uma pessoa anda nisto da literatura pela abundância.

Um exemplo ajuda sempre. Escreve Gonçalo M. Tavares no artigo para o Presseurop: «Le plus absurde est que la croyance en l’abstrait, ce retour à la pensée primitive qui a envahi le monde contemporain, (…)». Mas então acreditar na força e utilidade dos conceitos abstractos representa um regresso ao pensamento primitivo? Como assim? Quando Gonçalo M. Tavares pergunta: «O que é compreender o número pi? É saber que é 3,14 ou é saber mais 20 casas decimais ou mais cem casas decimais?» (Revista Ler, Dezembro 2010), apetece responder: nem uma coisa nem outra, só recorrendo à abstracção se poderá entender o seu significado. Isto não é ser primitivo, é ser sofisticado. E descanse Gonçalo M. Tavares, não faltam coisas que giram concretamente neste mundo à custa dessa «Eglise de l’Abstrait» (GMT, Presseurop).

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