A semana passada, numa estação de serviço, encontrei uma pasta que, para além de outros objectos, continha um caderno com alguns contos policiais escritos à mão. Vim a saber, mais tarde, que ela pertenceu, durante anos, ao escritor Danny Delito que ali a terá abandonado, não se sabe se propositada ou inadvertidamente. De acordo com testemunhas no local (duas senhoras extremosas da limpeza), Danny Delito parecia, nessa noite, um tudo-nada cansado, com fome, mas de olhos felizes, "meio abençoado", contou-me uma das senhoras, a de língua mais solta e esperta que eu sei lá. Pode não ser verdade, às vezes as pessoas exageram. Após alguns telefonemas, descobri, pela família, que o escritor abandonou Portugal logo no dia seguinte a esse episódio, para rumar ao Rio de Janeiro, onde pretende gastar o resto da vida muito devagar, como naqueles sambas sussurrados em que elas vêm e passam (uma ambição antiga, ao que consta). Antes da partida, Delito autorizou a publicação da sua obra por terceiros e quartos, recorrendo à frase: "estou-me nas tintas". Assim que a minha vida o permita, irei transcrever aqui, na íntegra, um desses contos. Por enquanto, deixo-vos apenas o parágrafo inicial:
Vendo bem, não poderia ser de outra forma. Fossem os cuidados menores, sabe-se lá a que facínoras na sombra chegaria o plano tão secretamente cozinhado. Faltavam dez minutos para a meia-noite mais escura do inverno, quando Ned levantou uma voz rouca e quase sem peso ao ouvido de Paul: "Por duas vezes tomas a rua da direita e só depois, com o néon do Black Swan a piscar umas cores bestiais sobre o capô e sobre o teu ombro encostado ao vidro, só depois - ouve bem, meu calaceiro de meia-tijela - só depois darás sossego ao motor e farás descer da carrinha ao passeio, sem alarido, a miserável perna esquerda que deus te deu. Se tudo correr bem, o Fred estará à tua espera e assim que pousares o pé direito no chão, já não estarás sozinho. Nem que quisesses, meu lindo."
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