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≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 26.12.12

Dirty Clean

Não é nada fácil encontrar três minutos e meio tão melódica e harmonicamente requintados como estes, ao mesmo tempo preservando a leveza, a intensidade e a energia sem as quais qualquer canção pop-rock sucumbe, por melhores que sejam as ideias que nela venham a ser plantadas. De longe, a música mais empolgante do ano:
 

≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 21.12.12

Lanchar

Com a proximidade do Natal, ficamos todos mais perto da infância. É um vento que passa, mas ontem, por razões que a própria razão desconhece e, em princípio, quase de certeza, não quer conhecer, apeteceu-me um copo de leite quente a meio da tarde, em vez dos habituais dois dedos de cafeína. Para evitar o sentimento de vergonha no espaço público (eu sou assim), pedi um galão sem café. Um copo de leite quente? Isso, isso.

≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 9.12.12

Segunda vez

Apesar dos maravilhosos diálogos escritos a duas mãos (por Wilder e Chandler, enquanto se irritavam mutuamente numa sala da Paramount), uma das minhas cenas preferidas do filme Double Indemnity  (Pagos a Dobrar) não tem uma única palavra e surge na altura em que Walter (Fred MacMurray) visita Phyllis (Barbara Stanwick com peruca loira) pela segunda vez. Tal como no primeiro encontro, Phyllis desce umas escadas interiores da mansão e a câmara acompanha os seus sapatos e a célebre pulseira de tornozelo. Mas, da segunda vez, percebemos que está mais ansiosa, que talvez tenha esperado todo o dia por aquele toque de campainha. Como percebemos isso? Pela forma como ela acelera a descida nos últimos degraus. Meio segundo de filme.

Os chatos

"Centenas de verstás de estepe deserta, monótona, queimada pelo sol provocam menos tédio do que uma pessoa que se sentou, se pôs a discursar e não se sabe quando se vai embora."

 - Tchékhov no conto Casa com Mezanino

(caso pretendam fazer a conversão para chatos que laboram no Sistema Internacional: uma verstá são 1.067 metros)

≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 5.12.12

Danny Delito

A semana passada, numa estação de serviço, encontrei uma pasta que, para além de outros objectos, continha um caderno com alguns contos policiais escritos à mão. Vim a saber, mais tarde, que ela pertenceu, durante anos, ao escritor Danny Delito que ali a terá abandonado, não se sabe se propositada ou inadvertidamente. De acordo com testemunhas no local (duas senhoras extremosas da limpeza), Danny Delito parecia, nessa noite, um tudo-nada cansado, com fome, mas de olhos felizes, "meio abençoado", contou-me uma das senhoras, a de língua mais solta e esperta que eu sei lá. Pode não ser verdade, às vezes as pessoas exageram. Após alguns telefonemas, descobri, pela família, que o escritor abandonou Portugal logo no dia seguinte a esse episódio, para rumar ao Rio de Janeiro, onde pretende gastar o resto da vida muito devagar, como naqueles sambas sussurrados em que elas vêm e passam (uma ambição antiga, ao que consta). Antes da partida, Delito autorizou a publicação da sua obra por terceiros e quartos, recorrendo à frase: "estou-me nas tintas". Assim que a minha vida o permita, irei transcrever aqui, na íntegra, um desses contos. Por enquanto, deixo-vos apenas o parágrafo inicial:


Vendo bem, não poderia ser de outra forma. Fossem os cuidados menores, sabe-se lá a que facínoras na sombra chegaria o plano tão secretamente cozinhado. Faltavam dez minutos para a meia-noite mais escura do inverno, quando Ned levantou uma voz rouca e quase sem peso ao ouvido de Paul: "Por duas vezes tomas a rua da direita e só depois, com o néon do Black Swan a piscar umas cores bestiais sobre o capô e sobre o teu ombro encostado ao vidro, só depois - ouve bem, meu calaceiro de meia-tijela - só depois darás sossego ao motor e farás descer da carrinha ao passeio, sem alarido, a miserável perna esquerda que deus te deu. Se tudo correr bem, o Fred estará à tua espera e assim que pousares o pé direito no chão, já não estarás sozinho. Nem que quisesses, meu lindo."

(...)

≡≡≡≡≡≡≡≡≡≡ 2.12.12

Sinos

Para o bem e para o mal, fazemos parte de uma geração que foi alimentando um certo desprezo pelos momentos simbólicos. Olhamos de lado, com um desapego cínico, para as cerimónias de casamento, e com uma cautelosa distância para velórios e funerais. Quase nenhum ritual escapa ao nosso sarcasmo. O que nos interessa é o amor e a memória, não os canapés, os pratos de peixe e carne, a igreja engalanada, os ritos de passagem, a palavra que testemunha o compromisso, a entrega do corpo à terra. Mas no desejo de desrespeitar a tutela nem sempre meiga dos antigos, de romper algumas convenções sociais que inutilmente agrilhoaram as ambições dos nossos avós e talvez dos nossos pais, acabamos por também deixar nascer e morrer, desgarrados de tudo o resto, muitos acontecimentos importantes da nossa vida, que assim permanecem tristemente avulsos, fragmentados. Não admira que lidemos tão mal com o júbilo inesperado e com a perda.